CENA 1: Cristina fica tensa.
-Se você quiser, eu vou embora. Nem devia ter vindo, eu sei...
José, se emocionando ainda mais, resolve falar.
-Fica. Entre, por favor. A casa não é mais minha, é de minha ex esposa. Mas vou falar a ela e a minha namorada o que está acontecendo. Você pode aguardar aqui mesmo, vou ser rápido, tudo bem?
-Tudo bem... não estou incomodando?
-De forma alguma. Não vou me demorar, querida.
José, ainda emocionado, vai até Maria Susana e Idina, que lhe olha com espanto.
-Cê tá chorando, amor? Seus olhos estão marejados... - fala Idina.
-Verdade. O que tá pegando? Quem tá aí? - pergunta Maria Susana.
-Cristina. A mulher que recebeu as córneas e retinas da Arlete. - explica José.
-Entendi... imagino que você prefira conversar a sós com ela e quer que a gente fique ali com o Miguel, não? - pergunta Idina.
-Isso. Se não for pedir demais... - fala José.
Maria Susana e Idina vão até Miguel. José volta até onde Cristina está.
-Vem. Pode entrar. Fique à vontade, sente-se por favor... ai, nem sei o que dizer...
-Se você tá nervoso, imagine eu, José... eu nunca pensei que ia ter uma curiosidade dessas depois de meses. Falaram que podia acontecer, mas no meu caso demorou um bocado.
-Sabe o mais maluco disso tudo?
-O que?
-De certa forma, você me lembra minha irmã...
-Ah. Então tudo faz sentido agora! É por isso que o Fábio se envolveu comigo!
-Como é que é?
-Sim, José... eu e o Fábio tivemos um relacionamento. Mas eu não sabia da Arlete... descobri por acidente. E terminei tudo com ele.
-Que pena. Eu tive minhas diferenças com ele, mas tenho certeza de que ele é um bom homem.
-Disso eu também não tenho dúvida. Mas... deixa pra lá. Não vim aqui pra falar sobre minhas desventuras amorosas. Eu posso ver alguma foto da Arlete, se você tiver, por favor?
-Claro! Eu sempre levo uma foto da minha irmã comigo, na carteira.
José pega sua carteira e mostra a foto de Arlete.
-Não é que eu lembro ela, mesmo?
-Te falei, menina... é Cristina, certo?
-Sim... sabe, isso tudo é meio maluco. Até outro dia eu sentia a Arlete como uma sombra na minha vida.
-Num sentido ruim?
-Sim. Desculpa pela minha sinceridade sagitariana, mas... sim.
-Não tem problema. Afinal de contas você se envolveu com o cara que ia se casar com ela.
-Bem... foi basicamente isso. Mas hoje eu sinto algo diferente. Acho que alguma coisa, aqui dentro, mudou. Eu não consigo mais sentir a raiva que sentia dela.
-Claro, Cristina... não é dela que você sentiu raiva. Foi da memória dela, no máximo.
-Talvez nem isso, viu? Acho que senti raiva de mim mesma por não ter percebido o óbvio. Depois, se não fosse pelo fato dela ser doadora, eu jamais estaria enxergando hoje.
-Como é essa história?
-Vish! Doença degenerativa extremamente rara que acomete algumas mulheres da minha família, de geração em geração. Chama degeneração macular relacionada à idade.
-Como? Você parece ter menos de trinta anos...
-E tenho! O caso da minha família é mais raro porque atinge as mulheres na faixa dos vinte e cinco a trinta anos. Eu fui a primeira diagnosticada com precisão e a tempo... o que garantiu o transplante.
-Que coisa, hein? No final das contas, mesmo depois de morta, minha irmã fez um bem incalculável a você... ela sempre foi assim, de ajudar as pessoas.
José se emociona e Cristina se sensibiliza.
-Sabe, José... de uma forma esquisita eu me afeiçoei a você. Não sei se é por levar comigo uma parte da sua irmã... me sinto como se fosse um pouco sua irmã...
-Ah, Cristina... eu posso te pedir um abraço?
Cristina abraça José e se emociona. CORTA A CENA.
CENA 2: Flavinho está concentrado conferindo o estoque no depósito, quando é surpreendido por Gustavo.
-Ai, que susto, Gustavo! Custava fazer mais barulho quando chega?
-Você que tava distraído aí verificando o estoque. Vai demorar muito, ainda?
-Nada... já tava terminando. Por que?
-Faz um tempo que ocê não vem comigo distrair os pequenos...
-Ah, Gustavo... desculpa. Tem dias que esqueço, tem dias que não tou com muita cabeça pra isso...
-Não tou te cobrando p'rocê me pedir desculpas, fica de boa... só queria saber se dá pra vir comigo hoje.
-Ai... não sei. Não sei se tou num astral bom.
-Se ocê continuar nessa coisa de se colocar pra baixo, difícil...
-Gustavo... ocê sabe que não é simples. O luto ainda é recente. Você sabe disso.
-Eu sei... mas isso te impede de ver o lado bom das coisas? Vai viver até quando devoto de uma memória?
-Nossa... precisava pegar pesado assim? Se não fosse você, eu ia reagir mal.
-Reagir mal como? Se colocando a vida toda como pobre vítima das circunstâncias? Reage, Flávio! Você é tão incrível, sabe? E as crianças te adoram, sabia disso?
-E eu adoro elas...
-Eu posso saber o que ocê tá fazendo aqui, parado, cheio de dúvidas, então?
-Gustavo... eu não acho justo não dar o meu melhor pros anjinhos... deu pra entender agora?
-Isso só prova que você é realmente bom, Flavinho. Quer estar totalmente bem pra transmitir esse bem pra quem precisa... mas já parou pra pensar que de repente você se ajuda ajudando quem precisa? E eu posso apostar contigo que os pequenos vão se beneficiar de qualquer sorriso que ocê puder proporcionar a eles.
-Desse jeito eu fico até mais animado.
-Mas é justamente essa a minha intenção.
-Pra que, Gustavo? Você sempre arrasa com as crianças!
-Mas não sou nem metade do que você é com elas...
-Exagerado.
-Uai, parece que não me conhece, Flavinho! Ocê já me viu exagerar alguma vez nessa vida?
-Não... mas eu não sei se vou hoje...
-Eu queria muito que desse pra ser... mas se for te violentar, eu não insisto mais...
-Não, pera... calma. Eu tou pensando melhor... eu acho que vou.
-Maravilha! Sabe o que eu tava pensando?
-Lá vem... ideias mirabolantes pra arrancar risadas, a missão.
-Exatamente!
Os dois seguem conversando. CORTA A CENA.
CENA 3: Cristina conta mais detalhes a José sobre seu envolvimento com Fábio.
-Bem, então foi isso, José... eu me envolvi com ele quando tava de casamento marcado com esse Hugo...
-Que história, hein? Parece coisa de novela. Aliás... muita coisa na história de nós me lembra de uma novela.
-Que novela, José?
-Lembra daquela que passou em noventa e dois e noventa e três? Aquela que nunca reprisaram por causa da tragédia que aconteceu com a menina...
-Ah, eu sei, sim... “De Corpo e Alma”, o nome. Com a diferença que a transplantada recebia um coração da morta, né? Minha mãe que me conta mais sobre essa novela. Eu era bem criança, ainda... não ficava pra ver TV na sala até tarde da noite. Essa história da tragédia não me traz boas lembranças, porque uma tia minha morreu em circunstâncias digamos... bem parecidas, sabe? Minha irmã recebeu o nome dela, em homenagem...
-Enfim, deixa isso pra lá... melhor nem mexer nisso, se for dolorido.
-Melhor, mesmo... mas quer dizer que você acha o Fábio um cara bom...
-Bom demais! Eu impliquei demais com ele, mas sei que ele só não separou da Elisabete por mais de dez anos porque quem fez de tudo pra impedir esse divórcio foi ela própria.
-Sim... eu fiquei amiga dela. Ela me contou como dificultou a vida dele.
-Veja como a vida é... sabia que a Bete tá se envolvendo com a Maria Susana, a minha ex?
-Gente, que babado! Adorei! Sorte tem as duas de se permitirem, né? Eu espero que pelo menos consiga esquecer o Fábio.
-Engraçado, Cristina... você não me parece disposta a esquecer dele... parece que espera que algo mude.
-Só se for eu mesma, José. Mas você tem falado com o Fábio?
-Não sei dele desde que a Arlete se foi... sabe como é, né? Tanta correria, eu separando, arranjando namorada, minha ex arranjando também uma namorada... a vida andando às vezes deixa a gente meio tonto. Mas quero poder ver o Fábio logo... pedir desculpas por tudo...
-Desculpas?
-Sim... sinto que devo. Julguei ele das piores maneiras, durante anos...
CORTA A CENA.
CENA 4: Bernadete escuta a campainha tocar e atende. Ao abrir a porta, fica feliz ao ver de quem se trata.
-Madame Marie! Quanto tempo, minha querida! Entre, por favor!
-Sempre tão gentil, Bernadete... e tão bem! Você tá ótima, sabia disso?
-Nem tão bem quanto pareço, mas a gente vai vivendo, né...
-Não, sua boba... não subestime sua capacidade de superação. Você venceu a morte. E ainda tem um longo caminho pela frente.
-Você não sabe o quanto me alivia saber isso de você. Aliás... o que te trouxe aqui? Receio que eu não consiga te dar muita atenção hoje...
-Sem problemas, Bernadete. Hoje eu não vim te ver.
-Não? É o Leopoldo, então?
-Também não. É o seu filho.
-O Hugo?
-Não, o Flávio...
Bernadete se emociona.
-Você percebe, né? Eu sinto como se ele fosse meu filho.
-Ele na verdade te sente muito mais como mãe do que você sente ele como filho.
-Não... definitivamente não.
-Bernadete... a vida ainda vai te testar. Você vai precisar vencer velhos fantasmas. Encarar de frente o que se recusou a enxergar no passado e deixou pendente.
-Não faz sentido, querida... o Flavinho faz parte do meu presente. Não se relaciona com o passado.
-Se relaciona com o passado mais do que cê possa imaginar, Bernadete. Eu vim falar com ele... sabe se ele tem como pedir liberação do serviço hoje?
-Acho que tem, sim... deixa só eu ligar pra ele pra ele poder falar com a chefe?
-Não tenho pressa. Sei que a Cristina teve que dar uma saída e volta à clínica em instantes.
-Como é que você sempre sabe de tudo, Madame Marie?
-É esse o dom que Deus me deu, Bernadete. Eu sei das coisas. E me utilizo desse conhecimento para fazer algo de bom pelas pessoas.
-Te adoro, viu? Se quiser, já ligo pra ele...
-Espera mais uns minutinhos... senão ele acaba distraindo no serviço e se atrapalhando...
CORTA A CENA.
CENA 5: Instantes se passam. Cristina volta à clínica e, antes de chegar em sua sala, é abordada por Flavinho.
-Oi, Cris... queria saber se ocê vai precisar de mim hoje ainda...
-Tá acontecendo alguma coisa, Flavinho?
-Não que eu saiba. Mas é que a Bernadete me ligou faz uns cinco minutos... e disse que tem uma tal de Maria, Marie... sei lá como é o nome, me esperando. Diz que a mulher é meio vidente, meio médium... e que quer falar comigo.
-Ah, claro! Eu acho que sei de quem se trata. E pode apostar que quando ela encasqueta de falar com alguém, é pra ajudar.
-Desse jeito eu fico até meio assustado.
-Não fique, Flavinho. Madame Marie é apenas um instrumento.
-Você conhece essa mulher?
-Tem muito tempo. Ela faz parte da elite carioca. Mas faz essa caridade, essa doação, sem cobrar absolutamente nada. É uma alma desprendida dessas questões materiais, sabe?
-Desse jeito eu fico até animado de ver uma pessoa como ela.
-Então tá certo, Flavinho... eu te libero por hoje.
-Sério, isso?
-Normalmente eu não faria isso. Mas se Madame Marie disse que precisa falar com você, ela realmente precisa ter essa conversa com você.
-Nossa... muito obrigado, de coração!
-Nem precisa agradecer.
-Não vai descontar do meu salário?
-Relaxa... hoje é por uma causa nobre...
CORTA A CENA.
CENA 6: Fábio desabafa com Elisabete sobre sua conversa com Cristina.
-Nada foi do jeito que eu pensei que podia ser, Bete... nada!
-Já te falei mil vezes pra você tentar conter esse seu ímpeto libriano de criar expectativas... depois se frustra e ainda não sabe o motivo...
-O motivo eu sei. Mas não compreendo. A Cristina me ama. Sofre pelo nosso fim... e ainda sustenta.
-Fábio... você há de convir comigo que ela tem razões bem fortes pra isso. Se você tivesse jogado limpo desde o começo, tenho certeza que o resultado teria sido outro.
-Talvez a gente nem tivesse se envolvido do jeito que se envolveu.
-Será que vale a pena tergiversar sobre o que poderia ter sido? Acho meio inútil isso, meu amigo... o que já foi, já foi. Não se muda o passado.
-Eu sei... mas sabe o que me deixou intrigado?
-O que?
-A aparência dela.
-O que é que tem a aparência dela?
-Algo de diferente. Parecia que tinha mais luz.
Elisabete fica tensa, porém disfarça. Fábio percebe, mesmo assim.
-De repente você ficou tensa...
-Tensa, eu? Imagina, Fábio... isso deve ter sido uma impressão sua.
-Sei. Sua voz treme e seu olho esquerdo pisca antes do direito quando cê fica tensa...
-Ai, na boa... eu posso estar tensa por vários motivos. Agora eu preciso resolver umas questões... eu vou chamar Maurício pra te fazer companhia.
CORTA A CENA.
CENA 7: Flavinho chega em casa e Madame Marie se fecha com ele em seu quarto. Madame Marie percebe que ele está assustado.
-Eu sei que você tem medo. Nunca viu uma pessoa como eu na vida e ouviu uma quantidade absurda de histórias fantasiosas que só te meteram medo, não foi?
-Bem, eu... tava meio sem jeito de dizer. Mas sabe que sinto uma coisa boa em você? Você inspira confiança...
-Sabe o que é, Flávio? Eu só abro a boca pra falar sobre as coisas que posso dizer. E acredite: eu sempre sei mais do que digo, mas sei discernir até onde cada um de nós está preparado ou não pra saber das coisas.
-Você sempre foi assim?
-Desde que me entendo por gente. Mas preste atenção, Flavinho... você precisa deixar o Leonardo ir embora...
-Mas ele não foi completamente, ainda?
-Não! E talvez ainda leve algum tempo pra isso...
-Então é por isso que sinto que tou preso na memória dele, ainda?
-Não... ele ficou porque você vai passar por algumas duras provações, ainda. Vai se decepcionar com gente que te ama. E é por isso que ele não foi embora totalmente, ainda.
-Mas como eu posso ajudar o Leo a seguir o caminho dele?
-Você sabe como...
-Eu sei?
-Claro que sabe. Sabe também que os esforços em esconder o seu passado são inúteis. Deixa a verdade aparecer... não tenha medo.
-Vou precisar de algum tempo.
-Mas não se demore muito... senão pode ser pior...
Flavinho segue ouvindo Madame Marie. CORTA A CENA.
CENA 8: Ao andar pelo corredor do apartamento de Elisabete, Fábio acaba ouvindo conversa entre ela e Maurício.
-Mas mãe... cê acha certo esconder isso do pai?
-Claro que sim! A Cristina me pediu segredo! Você sabe como eu sou com segredos. Guardo mesmo!
-Só que... pensa bem, mãe... é direito do pai saber disso.
-E o direito da Cristina, ninguém pensa? Quem é que decide a hora certa de contar? É ela...
-Tá, eu sei. Mas em algum momento essa verdade vai ficar impossível de esconder.
-Que seja, meu filho... que seja. Mas não é da minha boca que seu pai vai saber que vai ser pai outra vez.
Fábio se choca.
-Então é isso... a Cristina tá grávida de mim!
Fábio segue ouvindo a conversa, sem ser notado.
-Tudo bem, mãe... mas a Cristina não vai poder esconder essa gravidez pra sempre...
Fábio toma uma decisão.
-A Cristina me deve uma explicação. Ah, se deve!
CORTA A CENA.
CENA 9: Depois que Madame Marie vai embora, Bernadete percebe que Flavinho ficou tenso.
-Ei... a conversa não foi boa?
-Claro que foi, Bernadete. A Madame Marie é excepcional... falou umas coisas muito verdadeiras.
-Não te disse? Ela é sempre assim, sempre ótima, sempre certeira. Não entendi é essa sua cara de preocupação.
-Eu fiquei com medo.
-Mas medo do que, meu querido? Não há o que temer...
-Mas fico assim... com medo do futuro.
-Deixa de bobeira. O que tiver de ser, será.
-É justamente isso que me dá medo.
-Não precisa disso, Flavinho... ela não te orientou?
-Sim...
-Então procura focar nessas coisas que ela te disse... e relaxa, meu querido... relaxa que tá tudo certo.
CORTA A CENA.
CENA 10: Cristina está em sua sala quando Fábio invade. Cristina se incomoda.
-Vem cá, eu não falei pra gente não se ver tão cedo? Quer fazer o favor de respeitar isso?
-Ah, agora você fala em respeito, né Cristina? Uma pena que não tenha lembrado de ter o mínimo de consideração e respeito por mim.
-Do que cê tá falando, cara? Andou bebendo? Eu, hein...
-Não se faça de desentendida.
-Não tou me fazendo de desentendida. Só não tou entendendo esse escarcéu todo aqui na minha sala. Quer chamar atenção de todo mundo?
-Só queria saber como você é capaz de dormir de noite, Cristina...
-Quer ser mais direto, por favor? Não tenho bola de cristal nem leitor de entrelinhas aqui.
-Por que você escondeu de mim que tá esperando um filho meu?
Cristina gela. FIM DO CAPÍTULO 73.
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